sábado, 1 de setembro de 2018

Preso em Mim



Passa pouco mais das 17:00 horas, uma multidão segue rumo ao centro da cidade. Todos movidos por um dos maiores venenos da humanidade: A Curiosidade. Cerca de aproximadamente dez minutos, duas grandes bolas de fogo cruzaram o céu da cidade, dirigindo-se para o centro da cidade. Eu estava lavando o carro quando senti o deslocamento de ar, pouco depois veio o barulho ensurdecedor, pensei que seria o meu fim, mas por sorte ou azar, os dois objetos em chamas seguiram seu destino até que colidirem com o solo quilômetros à frente. Agora sou apenas mais um curioso seguindo a multidão cega ladeira à cima.
Conforme vou me aproximando do local da queda, vejo carros da polícia, bombeiros e mais curiosos, todos com cara de espanto e perplexidade. Uma cidade tão pacata situada no meio do nada, até então deliciando-se em sua singela rotina de um comum sábado de verão, agora mais parece uma Woodstock sem o rock n roll. Sinto-me estranho, um leve zunido no ouvido, uma tontura aqui, outra ali. Penso que deve ser a emoção por presenciar tal evento, afinal algo caíra do céu e certamente não eram anjos alados, pois anjos alados não se viajam em esferas de fogo.
Estou cerca 500 metros do local, vejo a trilha de destruição e caos deixada pelos objetos flamejantes. Desvio-me do caminho para ajudar uma senhora que estava presa sob o que parecia ser uma barraquinha de cachorro-quente, soube mesmo antes de ler o letreiro, devido ao cheiro do molho e das salsichas espalhadas pela calçada. Você está bem? Pergunto ajudando-a a se levantar, ela respondeu que sim com a cabeça, em seus olhos assustados ela me agradeceu e seguiu seu rumo, mancando. Deixe-me sair, sozinho você não dará conta. Virei-me para ver quem falava, porém não havia ninguém que poderia estar falando comigo, apenas os curiosos seguindo para o centro, e os feridos sentados na calçada ou indo em direção oposta. Se não conseguir me libertar à tempo, nós dois vamos morrer. Mais uma vez viro de costas para localizar a voz, mas sem sucesso, não havia ninguém ali.
Que merda está acontecendo, penso eu. Sinto-me estranho, minha visão fica embaçada, balanço a cabeça a fim de recuperar o foco. De repente todas as cores somem da imagem que se projeta à minha frente, sinto-me angustiado. Fico ereto e olho em direção à base da cratera formada pelo recente incidente, meu corpo projeta-se a passos firmes em direção ao desastre. Não sinto meu corpo, parece que sou apenas um passageiro preso nesse receptáculo em movimento, tento inutilmente controlar minhas pernas, mas sem nenhum sucesso. Meu deus o que está acontecendo comigo? Pergunto-me desesperado. Minha cabeça vira-se levemente e vejo corpos caídos, quanto mais perto chego, mais corpos estão espalhados. Não sei se são feridos ou mortos, com a visão dicromatica fica difícil distinguir. Sinto a culpa corroer o meu ser quando meu corpo robotizado e sem a minha consciência para guiá-lo, passa por cima dos cadáveres estendidos no chão. É notório o aumento da minha temperatura corporal. Minha cabeça abaixa sutilmente e olha para as mãos que outrora ajudaram uma senhora a sair debaixo de um carrinho de cachorro-quente. Noto que meus braços começam a exalar uma leve bruma, minha boca sorri. Nesse momento as cores retornam à minha visão e eu caio de cara no chão. Sinto o sangue quente escorrer do meu nariz, meu rosto dói. Levanto-me e olho minhas mãos, a bruma que a pouco emanava agora já não mais existe. Pergunto-me o que poderia ter sido aqui. Será que isso tem a ver com os objetos que vi cruzando o céu minutos atrás? Recolho até a última gota de coragem que resta em meu corpo e olho de forma decidida para o centro do local da queda, ergo-me cerrando os punhos e sigo determinado ao encontro do desconhecido.
Chego ao local, o cheiro de corpos queimando, torna o que antes era uma bela praça em uma verdadeira imagem de como poderia ser o inferno descrito pelas diversas religiões. Definitivamente não são anjos caídos do paraíso. Os objetos ainda estão em estado flamejante e distam entre si a uma distancia de 10 metros aproximadamente. Mesmo com todo o caos e morte ao redor, as duas esferas em chamas proporcionam uma visão única. Enquanto admiro aquelas esferas de fogo a queimar no fundo da cratera, sinto-me tonto novamente, mais uma vez minha visão fica turva e caio de joelhos. Tudo fica escuro, estou consciente, mas não consigo enxergar, sinto meu corpo levantando e ficando enrijecido, sinto todos os cheios possíveis, sinto o calor que emana das esferas ardentes abaixo. Aos pouco minha visão é restabelecida, só que novamente vejo tudo em uma escala monocromática. Minha cabeça se vira e encara as demais pessoas ali. Fujam ou todos vão morrer. Essa não é a minha voz. Provavelmente é a sensação mais estranha que já senti. Palavras saindo da minha boca que não foram ditas por mim. Mais uma vez sinto meu corpo arder, não tenho domínio sob meus membros, sou mais uma vez um passageiro em meu corpo guiado por alguma coisa. Escute bem seu idiota fracote. Dessa vez minha boca não se moveu, ouvia aquelas palavras sem usar os meus ouvidos. Nesse momento percebi que era a mesma voz que falara comigo quando salvava a senhora em apuros. Escute bem o que lhe digo seu saco de carne inferior. Fui tomado por um medo surreal. Aquela voz estava vindo diretamente da minha cabeça, tentei mais uma vez retomar o controle do meu corpo, e novamente falhei. Não tente vir à tona, se você o fizer, todos nós morreremos. Você me entendeu? Não sei como responder uma vez que não tenho controle sobre minha boca, então em pensamento digo que entendi. E então a voz retorna dizendo: Vejo que ainda está ai e consciente, talvez você queira apreciar uma boa negociação intergaláctica. Se eu pudesse sentir a minha espinha, com certeza ela estaria congelada de medo. Sinto meu corpo saltar para dentro da cratera onde ainda encontram-se as duas esferas em chamas.
Meu corpo pousa como se fosse uma pluma. Sinto outra a temperatura do meu corpo aumentar, é um calor diferente, estranho. O que você esta fazendo com o meu corpo? Pergunto para o nada, e em segundos recebo a resposta. Salvando o seu mundo, agora por favor, queria ficar quieto. Seu corpo não é tão forte, por isso não me interrompa novamente. Algo chama a atenção dos meus olhos, a luz produzida pelas chamas das esferas se apaga. Meu medo escala juntamente com a minha curiosidade. Sinto uma energia estranha emanando do meu corpo, nunca sentira nada parecido. Vamos lá! Diz a voz em uma mistura de alegria e ansiedade.
Minha cabeça se posiciona a fitar as esferas, meu olhar está direcionado e bem centrado na esfera mais próxima. Minha visão monocromática não possibilita que eu identifique de que cor são as esferas. Meu corpo permanece imóvel, firme e atento. De repente um ponto de luz surge perto do topo da esfera. Esse ponto de luz se divide em dois, distanciando-se um do outro de forma simétrica. Quando esses feixes de luz eqüidistantes atingiram uma determinada largura, seguiram-se  para baixo, mantendo a distancia entre si, percebi o que estava acontecendo e simplesmente disse: Uma porta, a luz está formando uma porta. A voz veio ríspida e alta em minha mente. Calado, por acaso você quer morrer? Calei-me no mesmo instante, aguardando com certa ansiedade o que sairia daquela esfera.
Quando os feixes concluíram o ciclo, formando um retângulo. A luz subitamente apagou e o retângulo antes delimitado pelas luzes, começou a se tornar translúcido. E de dentro da esfera surge uma criatura humanóide, longos braços e longas pernas, uma cor próxima ao azul escuro. A criatura parece estar meio desorientada, aparenta ter mais de dois metros. Percebo que ela olha para todos os lados, parece ter certa admiração pelo que vê. Mas quando seus olhos fitam os meus, a criatura a minha frente toma uma postura defensiva. Mantenho os olhos fixos naquele estranho ser a minha frente, por alguns segundos nada acontece, parece que ela está me examinando, me sinto completamente desconfortável sob aquele olhar perturbador. Mas segundos depois, a criatura sai da postura defensiva, seu olhar examinador continua pairando sobre meu corpo. A criatura exibi o que suponho ser um pequeno sorriso, fala algo em uma língua que nenhum filme que eu tenho visto consiga se aproximar. Quando a criatura vira de costa a fim de embarcar novamente na esfera, meus olhos movem-se sem o meu consentimento, e  fitam a segunda esfera que já encontra-se aberta. Nesse momento entro em pânico. A única coisa que vejo é um borrão azul escuro à minha frente, sinto um forte golpe que me arremessa cratera acima. Meu corpo voa por mais de 15 metros de altura. Quando paro de subir, sinto apenas a dor no meu peito. Sei que é o fim, penso. Sigo em direção ao chão que se aproxima velozmente. Nenhum humano sobreviveria à isso. Se eu tivesse controle dos meus olhos, com certeza iria fechá-los, mas meus olhos não focalizavam o chão e sim a segunda criatura que agora estava de pé à beira da cratera, a observar a minha queda. Meus olhos rapidamente focam o chão e eu penso “é agora”. Só que faço um movimento extremante rápido e como se fosse um bailarino, pouso suavemente no terreno cheio de corpos espalhados. Sinto alegria por estar vivo, mesmo não sendo mais o dono do meu corpo. E aí humano? Pergunta-me a voz na minha cabeça. Estamos pronto?

Local: Imbuí, Salvador - BA, Brasil

16 comentários:

  1. Adorei, fiquei super curiosa para saber o que estava acontecendo com ele ! Ps: adorei a riqueza de detalhes na descrição das cenas

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  4. E o tipo de texto que mexe com minha imaginação. Lê-lo me deu vontade de saber qual seria o próximo passo, qual seria o objetivo desses seres aqui na Terra. Parabéns, muito bom!

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  5. Muito bom!
    Nenhum humano sobreviveria à isso. Se eu tivesse controle dos meus olhos, com certeza iria fechá-los, mas meus olhos não focalizavam o chão e sim a segunda criatura que agora estava de pé à beira da cratera, a observar a minha queda. Meus olhos rapidamente focam o chão e eu penso “é agora”.

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  6. É realmente angustiante imaginar como deve ser sentir-se um mero passageiro no próprio corpo. Aguardando por mais. Espero que em breve :)

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  7. Incrível! Adorei...
    O texto é contagiante, a gente não consegue parar de ler... kkkkkk...

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  8. "E aí humano? Estamos pronto?" Aguardando a continuação.

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  9. Me senti assistindo um episódio de Black Mirror. Muito bom mesmo.

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  10. Muito bom, rico em detalhes que nos prendem do começo ao fim.👏👏👏

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  11. Muito bom !! Palmas, palmas, palmas!!!

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  12. eta peste....que venha a continuação...

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